A Carta
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Olhei para o relógio no alto da parede estampada. O lugar dispunha de uma dezena de mesas no estilo rústico amadeirado. Um lustre elegante de cristal pendia do alto teto abobadado. Podia-se observar todo o movimento do recinto daquele ponto. O ar pitoresco era encantador. Fui acordado do meu devaneio:
Olhei para o relógio no alto da parede estampada. O lugar dispunha de uma dezena de mesas no estilo rústico amadeirado. Um lustre elegante de cristal pendia do alto teto abobadado. Podia-se observar todo o movimento do recinto daquele ponto. O ar pitoresco era encantador. Fui acordado do meu devaneio:
- Desculpe-me, estou atrasado. - puxou a cadeira à minha frente.
- De modo algum! Passaram-se apenas 5 minutos.
- Então, se me dá licença... - sentou-se.
Olhou ao redor por alguns instantes. Seus olhos nostálgicos e escuros brilhavam ao correr o ambiente.
- Faz anos que não saímos para tomar um café. - comentou.
- De fato. Dezesseis para ser mais exato.
Fixou o olhar em mim. Sorriu com satisfação.
- Como foram agradáveis os momentos que passamos juntos aqui! Este lugar não mudou absolutamente nada! Nem mesmo envelheceu!
- Você também não, meu caro.
- Ora! Não me bajule! - gargalhou - A que devo à honra?
- Não posso tomar um café com meu velho amigo sem segundas intenções?
- Devo dizer que passados dezesseis anos sem contato este convite é no mínimo suspeito, mas decerto me alegra.
- Neste caso, é perfeito! Vamos vaguear pela cidade mais tarde, como era de costume. Relembrar os bons tempos!
- Boa tarde, senhores, seus pedidos? - interrompeu uma jovem sorridente de cabelos claros e cuidadosamente presos no alto da cabeça. Vestia um avental listrado monocromático em tom de bege claro e levava consigo um pequeno bloco de anotações junto de uma caneta.
- Vou querer um expresso duplo. - respondi olhando o menu.
- E o senhor? - voltou-se para o meu amigo.
- Um cappuccino, por favor.
A jovem acenou com a cabeça e se retirou.
- O que tem feito, meu caro? - perguntou-me.
- Nada extravagante. Tenho trabalhado em casa traduzindo alguns documentos. Quanto à diversão, contento-me em ler.
- Tem estado bem sozinho pelo visto.
- De fato. Mas agora falemos de você.
- Estou gerenciando meu próprio negócio. Trabalho na indústria têxtil. O mercado está em alta, você adoraria ver os números!
- Alegro-me por você. Tem família?
- Tenho. Uma linda esposa e dois adoráveis filhos já quase na adolescência.
- Amaria os conhecer!
- Decerto, marquemos um jantar semana que vem.
- Fico honrado!
- Aqui está seu pedido, - indagou a garçonete - tenham um bom apetite.
- Obrigado. - agradeci.
- O café aqui continua o mesmo de sempre, você fez uma ótima escolha de lugar.
- Nesses dezesseis anos, não fui capaz de encontrar um lugar à altura daqui. E bem que procurei!
- Por muitas vezes me lembrei de você nesses anos. Perguntava-me por onde andava. Sabe, quando você mudou de país subitamente, todos perdemos contato com você e ficamos preocupados.
- Peço-lhe desculpas pelo inconveniente. Minha mãe adoeceu, já estava em idade avançada e era viúva. Tive que cuidar dela.
- Compreendo. Não guardo ressentimentos. Passou quantos anos no país?
- Seis.
- Um tempo razoável, eu diria. E por que retornou?
- O custo de vida lá era alto. Só permaneci lá com minha mãe durante seu tratamento.
- Deve ter sido difícil.
- Continuemos enquanto caminhamos. A conta, por favor! Deixe que eu pago, faço questão.
- Se é assim, muito obrigado.
Paga a conta, deixamos o café. A cidade que antes fora colorida estava desbotada. Os jardins não eram mais tão bem cuidados nem vívidos, mas nem por isso perdiam seu charme. Passamos pelas mesmas vielas que costumávamos andar. O entardecer dava à cidade um tom alaranjado. As luminárias ainda apagadas, eram antigas e adornadas no estilo francês. O ar estava fresco e cheirava à terra úmida dos largos canteiros presentes em todo o caminho. As casas eram pequenas e grudadas umas às outras e suas janelas eram estreitas, possuíam dois andares. As ruas feitas de blocos e foram substituídas por asfalto, infelizmente. Eram largas e tinham fácil acesso. Por fim, caminhamos até a praça em frente à prefeitura, onde convidei meu amigo para sentar. Os bancos eram todos de madeira pintados de branco.
- Sabe, você tinha razão, tive motivo para lhe convidar.
- E qual seria? - questionou-me.
- Devo dizer que minha vida tem estado muito difícil ultimamente. Não tenho sabido como equilibrar minha vida pessoal com trabalho.
- Vida pessoal? Pensei que tivesse dito que apenas lia em suas horas vagas.
- Até alguns meses atrás. Ela tem tomado meu tempo.
- Ela? - fitou-me surpreso. - Quem é ela?
- Não nos apeguemos a detalhes.
- Sua identidade não me parece um mero detalhe.
- O que importa - ignorei seu comentário - é que apenas você ficará sabendo.
- Espera, estamos falando de algo confidencial? Meu Deus, onde você se meteu?
- Não se preocupe, não é o que imagina.
- Como não vou me preocupar? Tudo o que você diz é tão confuso!
- Como eu dizia, preciso que me ajude.
- Você sabe que faria qualquer coisa por você, meu caro, só não gostaria que acontecesse o mesmo que antigamente.
- Na época eu era apenas um rapaz imaturo, perdia dinheiro com jogos e tinha uma vida frívola. Assim que fui obrigado a encarar a realidade e assumir minhas responsabilidades com a minha mãe, mudei totalmente. Você sabe, alguns anos depois de me mudar, paguei a todos a quem devia.
- Muito bom ouvir isso. O que posso fazer para ajudá-lo nesse caso?
- Preciso de um advogado.
- Por Deus, o que foi que você fez?
- Nada, só peço que confie em mim.
- Está certo. - tirou um pedaço de papel de um bolso e uma caneta de outro, apoiou o papel na coxa direita e usou a mão esquerda para pegar a carteira do bolso e ler o número anotado lá. Transcreveu o número e escreveu um nome logo abaixo.
- Aqui está, ele é meu primo. Tem me assessorado com as questões jurídicas da empresa, mas trabalha com direito civil e familiar. Espero que sirva.
- Muito obrigado, é justo o que preciso. - ficamos em silêncio por alguns instantes. - Ela tem consumido toda minha energia.
- E por que está com ela? Não entendo.
- Não tenho escolha. Ela que está comigo e não o contrário. Está acabando comigo, isto é certo.
- Soa abusivo.
- E que posso fazer a respeito? Eu... Eu não posso fazer nada!
- Escuta, eu quero ajudar.
- É inútil, o telefone era tudo que podia fazer por mim. - olhei para o relógio do praça - Perdoe-me, preciso voltar para casa.
- Venha jantar conosco na quarta-feira então.
- Estarei lá.
- Às oito então.
Despedimo-nos e partimos caminhos opostos.
Na quarta-feira, fui pontual. Estava à porta de meu amigo às sete e cinquenta e oito. Fui atendido de pronto. Fui apresentado à sua adorável e alegre família. Comemos lasanha, bebemos vinho e conversamos sobre assuntos triviais até que as crianças se deitaram. Estávamos na sala de estar, havia um sofá e duas poltronas voltadas para a lareira. Eu estava acomodado na poltrona e o casal no sofá. As crianças já haviam subido para seus quartos.
- Diga-me, - exclamou sua esposa - pelo que me foi dito, você está saindo com alguém ultimamente.
- Não exatamente.
- Ah! Então há uma mulher na história! - ela respondeu.
- Não, não há.
- Espera, então, do que se trata? - perguntou meu amigo. - certamente lembro que você a mencionei.
Soltei uma riso e logo meu semblante voltou a ficar sério.
- Você está nos assustando. Como pode não haver uma mulher? Pela forma que você falou eu estava certo de que havia!
- Que forma? Talvez quando eu digo que ela está e sempre estará.
- Está aí novamente. A quem você se refere?
- A que me refiro - corrigi, fiz uma pausa e tomei fôlego - o meu médico... ele disse que tenho no máximo três meses.
- Por Deus! - levantou de súbito. - Isto é péssimo! E o que você tem?
- Os médicos não sabem. Mas não há mais a fazer.
Começou a andar de um lado para o outro da sala.
- Não se estresse por minha causa, meu caro. Eu estou bem, já aceitei meu destino.
- Desculpe-me, é difícil manter a calma! É uma notícia difícil de receber, não esperava por ela.
- Compreendo muito bem.
- Vou deixá-los à sós. - Disse sua esposa. - Boa noite.
- Obrigado, querida. - Deu-lhe um beijo na testa e ela se retirou do cômodo logo em seguida.
- Desde quando...?
- Há dois anos descobri que estava doente, tratei-me por seis meses e fui liberado. Há um mês desmaiei e fui internado novamente. Foi quando contatei meu advogado de anos atrás para tratar do testamento. Ele já havia se aposentado, por isso pedi sua ajuda. Fui liberado anteontem, quando te encontrei. Sou um caso perdido, deixaram-me para morrer em casa. Tomo apenas meia dúzia de remédios para reduzir a dor e me deixar mais disposto. Repouso a maior parte do dia.
Deu uma pausa para processar o que eu acabara de lhe contar.
- Nunca pensei que isso pudesse acontecer. Você sempre pareceu... não sei ao certo... invencível! Sempre foi tão inconsequente, fazia tudo como se fosse inatingível. - hesitou. - Vou sentir sua falta, você não imagina o quanto. Venha cá.
Levantei e meu amigo me puxou para um abraço. Foi desse momento que me dei conta. Eu iria morrer. Desatei a chorar como um garotinho de cinco anos com medo de se perder da mãe. Queria correr para longe. Nada evitaria meu fim, nem mesmo minha força de vontade para lutar. Abracei-o de volta com mais força. Afastei-me.
- Vim aqui para falar sobre o testamento.
- Certo... - consentiu - Prossiga.
- Não possuo muitos bens, como sabe. Vendi o pouco que me pertencia e gastei uma grande parcela do valor com tratamentos, mas gostaria de deixar o que restar do meu dinheiro a você.
- Eu... eu não sei o que dizer. Não posso recusar...
- Você sempre foi meu amigo mais próximo, não tenho outra pessoa a quem entregar.
- Está bem, farei bom uso de tal. - disse em tom de responsabilidade.
- Sei que irá. Confio em você. - Acenou com a cabeça. - Quero agradecer por ter sido meu amigo todos esses anos e não ter desistido de mim. Sei que muitos se esquecerão logo e não os culpo. A última coisa que lhe deixo é esta carta, peço que leia assim que eu morrer.
- Assim o farei. - sorriu melancólico - Ora, fique por mais umas horas! Conversemos!
- Será um prazer, meu caro!
O restante da noite e os próximos meses passaram num piscar de olhos. Meus dias foram desperdiçados em trabalho, afinal, tudo que se faça em vida é inútil para depois da morte. Morri sozinho, em casa, sentado no sofá. Só fui encontrado no dia seguinte.
"Caro ___,
Senti a necessidade de refletir sobre minha mísera vida. Lembro-me de quando assimilei pela primeira vez o significado de morte. Meu pai morreu quando eu era ainda muito pequeno, e mesmo sabendo que ele tinha morrido não entendia o que isso queria dizer. Somente algumas semanas depois, quando perguntei por meu pai e minha mãe respondeu que ele nunca mais voltaria, eu compreendi. Foi quando percebi: morte é um caminho sem volta. E mesmo com todas as experiências que tive em minha vida, sinto que nada aprendi. Mesmo quando perdi minha mãe, não foi nem perto de descobrir que eu estava morrendo. Todos sabemos que vamos morrer, isto é fato. Mas se deparar com uma data é aterrorizante. Quando recebi a notícia, devo admitir que fui tomado por desespero e raiva. A princípio, senti-me injustiçado. Não entendi o porquê daquilo estar acontecendo comigo. Se eu pudesse, naquele momento, eu mataria alguém para poder sobreviver. Não acho que fui maldoso, sinto que aquilo era mais um instinto natural de luta pela sobrevivência. Minha segunda reação foi querer sair impulsivamente fazendo qualquer coisa que viesse à minha mente. Mas percebi que seria em vão. Em terceiro, pensei em fazer algo de valor com meu tempo. Mas também desisti desta última ideia, afinal, seria uma tentativa falha. Por fim, decidi passar meus dias como o habitual: trabalhando e lendo livros. Fui obrigado a acostumar com a ideia, mas a verdade é que ela sempre continuou me assustando. Nada fiz de útil desde que nasci, nem mesmo fui importante na vida de alguém, e acho melhor assim. Ao mesmo tempo que odeio a ideia de que vou morrer sozinho e esquecido, fico feliz por não deixar amigos e parentes desolados. Entretanto, no exato dia que deixei o hospital, lembrei-me de você, meu único verdadeiro amigo. Nunca fiz jus à sua amizade. Sinto que devo me redimir, espero que não seja tarde. Quando lhe encontrei no café, esperava que estivesse bravo comigo por tudo que eu lhe fiz, mas estava com o sorriso de sempre no rosto. Não lhe importou o tempo que passamos longe, não lhe importou que não lhe dei notícias, ficou feliz simplesmente em poder me ver novamente. Sou grato por todo tempo que passamos juntos. Sinto muito por lhe envolver nisso. Minha sincera gratidão. Espero que você viva uma vida sem arrependimentos.
Sinceramente,
Seu amigo, morto."
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