Está Frio
❧
– Por favor, vocês precisam acreditar em mim!
– Muito bem, senhora, diga-nos o que aconteceu.
– Não… – hesitou, – não aconteceu, ainda. – Os policiais se entreolharam curiosos – Mas eu corro perigo, minha vida está em jogo!
– A senhora é casada? Seu marido está te ameaçando?
– Não, não é isso...
– Algum ex?
– Não, também não. Eu não sei quem é, eu…
– Algum stalker? A senhora está sendo perseguida?
– Eu… – ficou pensativa por uns instantes – não sei explicar.
– Ah, então você realmente foi ameaçada.
– Não…
– Escuta, a gente realmente quer te ajudar, mas se a senhora não contar nada pra gente, não tem nada que possamos fazer.
– Não, por favor! Vocês precisam fazer alguma coisa! Eu estou dizendo, eu vou morrer!
– A senhora pode voltar quando resolver falar. – levantou-se, calmo, e caminhou até a porta, abriu-a indicando a saída.
A senhora, assustada e ofendida, pegou suas coisas e foi embora. Cautelosa, analisava o ambiente com o canto dos olhos atenta como uma presa em período de caça. Suas pupilas dilatadas, suava frio e tremia.
– Drogas, – falou o oficial para o colega – aposto que está drogada.
– Acredito que não, disseram que não é a primeira vez que ela vem aqui. Acreditam que ela está ficando maluca. Algo psicológico eu diria.
Eu observava do canto da sala. Ao contrário dos idiotas zombando da situação, as palavras da senhora me impactaram profundamente. Eu conhecia aquela sensação. Se fosse qualquer outra cidade, aquilo não me incomodaria.
***
Encarava seja lá o que passava na televisão. Minha mente não parava. Só então que escutei a porta sendo fechada atrás de mim. Pisquei voltando para a realidade. Peguei o controle e apertei o botão de desligar.
– Anda acordado? Já disse que não precisa me esperar.
Abri um sorriso sincero.
– Eu quis esperar. – levantei do sofá e me aproximei deixando um beijo em sua testa. – Queria passar um tempo com você, mesmo que só no jantar. Nossa vida tá tão corrida ultimamente que eu senti sua falta. – abri os braços em um convite.
– E a nossa bebê?
– Coloquei ela pra dormir mais cedo depois de dar um banho nela. Ela tá lá no quarto, não precisa se preocupar.
Suspirou e se aconchegou no meu abraço.
– Eu tô cansado. – disse contra o meu pescoço.
– Eu também. – passava gentilmente meus dedos em seus cabelos.
Ficamos por um momento apenas descansando. Afastei-me devagar olhando em seus olhos.
– Vamos comer? Você deve estar com fome.
– Me conhece tão bem.
– Tão bem que fiz seu prato favorito.
– O macarrão?
– Esse mesmo.
– Bem que eu tava sentindo um cheiro bom.
Comíamos em silêncio aproveitando o alimento ali servido. Não demorou muito pra acabarmos. Levantei recolhendo os pratos e os levando para a cozinha.
– Não vejo a hora disso acabar. – disse entrando no ambiente logo depois de mim.
– Eu também, não vou mentir. Não aguento mais olhar pra qualquer canto da casa e ver caixa.
– Você acha que vai dar certo?
– Não sei. Mas eu prefiro acreditar que sim.
– É, não sei. – tinha uma expressão séria no rosto. – Parece que só a gente tá preocupado com isso. É tudo tão estranho.
– Bom, hoje mais cedo aquela senhora voltou na delegacia. Foi igual às outras vezes. Não quiseram escutar ela e mandaram ela de volta pra casa.
– É frustrante. Todas essas notícias bizarras no jornal e ninguém parece dar importância.
– O importante é que semana que vem a gente vai estar bem longe daqui e aí a gente não vai mais precisar se preocupar.
– É, você tá certo.
– Tenta não pensar demais nisso, tá?
– Vou tentar. Mas deixa que eu lavo a louça, você já cozinhou pra gente. Não aceito não como resposta.
– Você quem manda. – ri. – Vou tomar um banho então. – deixei um selar em seus lábios antes de sair.
Entrei no banheiro para tomar o meu segundo banho do dia. Deixei que a água quente escorresse pelo meu corpo. Meus músculos tensos pareciam não querer relaxar. A água que deveria me acalmar parecia apenas pesar sobre meus ombros. Era difícil. Passar tranquilidade era difícil, mas era preciso. Queria que tudo corresse bem, e agora mais do que nunca. Faltava menos de uma semana, menos de uma semana para eu finalmente poder ficar em paz. A verdade é que eu não estava muito diferente daquela senhora. A diferença é que eu não tinha medo de morrer. Meu medo era de deixar minha família para trás, ou pior, perder minha família. Eu jamais poderia permitir que algo acontecesse com eles. Não, eu não deixaria, mesmo que me custasse tudo que eu tinha. Tentei afastar meus pensamentos. Tudo que eu mais queria era gritar. Respirei fundo e desliguei o chuveiro. Eu deveria me sentir revigorado, mas eu não sentia. Parei de frente para o espelho embaçado, olhando minha figura desfocada. Ficaria tudo bem, não é? Eu queria acreditar naquilo, queria mais que tudo. Mas algo gritava dentro de mim, o grito que eu escondia. E naquela noite, ele parecia mais alto que nunca.
Voltei para o quarto, a luz já estava apagada. Tateei com cautela a colcha. Não queria acordá-lo. Deslizei para debaixo das cobertas num instante. Era mais uma noite fria naquele longo inverno.
– Boa noite. – sussurrou com uma voz rouca de sono.
– Boa noite. – virei-me em sua direção. – Achei que já tivesse dormido.
– Não consegui dormir. Você sabe que o inverno me assusta.
– Sim, mas me preocupo com a sua saúde também. Tá tudo bem, tô aqui com você.
– Só de pensar, chego a sentir calafrios. Amor… – seu olhar cálido me abraçava. Eu tentava não transparecer meu nervosismo – não quero que nada aconteça com a gente, muito menos com as crianças.
– Não vai. Além de que todas as vítimas eram adultos. – puxo ele para os meus braços – Vai dar tudo certo, viu? Agora vamos dormir, você está com olheiras horríveis. – brinquei.
– Cala a boca, tá escuro, você nem me enxerga que eu sei. – riu – Boa noite.
– Durma bem.
Atento, observei-o adormecer como de costume. A verdade é que, desde o último acidente, não consegui dormir mais. Passei noites em claro. Toda tentativa terminava com um sonho em que eu vivia aquele dia novamente. Nunca acreditei em lendas urbanas ou rumores sem sentido, até eu ver com meus próprios olhos. E agora não conseguia apagar de minhas memórias as imagens da vítima.
O corpo pálido parecia ter sido desenterrado de uma pilha de neve. Congelado da cabeça aos pés. Era corriqueiro que trouxessem moradores de rua vítimas do frio mortal do inverno. Contudo, a expressão daquela pessoa era de do mais puro pavor, como se ela soubesse exatamente o que estava por vir. Eu já havia escutado sobre outros casos assim, mas nada além disso. O mais curioso dos casos de hipotermia que vinham aparecendo na cidade, é que além da expressão de medo, todos tinham um fator comum, por assim dizer. Nenhuma vítima estava desabrigada. Todas estavam em suas camas, bem agasalhados, num ambiente quente, alguns até compartilhavam a cama com alguém que, por algum motivo, não passou pela mesma morte.
– Papai… – sussurrou entrando no quarto com passos leves e lentos.
– Que foi, meu anjo?
– Não consigo dormir… posso deitar com vocês?
– Claro, – ergui a coberta – pula aqui!
O barulho do vento na janela mal vedada da sala me distraía. O assobio parecia me prender. Bocejava enquanto afagava os cabelos longos, lisos, brilhantes e sedosos da linda criaturinha ao meu lado.
– Papai, tá muito frio. – dizia tremendo.
– Vem cá, chega mais perto. - abracei-lhe com cuidado.
– Papai, eu tô com medo…
– Tá tudo bem, papai tá aqui. – tentei confortá-la.
– Tá muito frio. – disse em som choroso – minhas mãos tão doendo.
Peguei suas pequenas mãozinhas. Algo estava errado.
– Nossa, que mãos geladas!
– Papai… – seu tom de voz mudou de repente. Parecia brava. - por que você não fez nada?
– O que? – olhei confuso de volta em seus olhos. Mal a enxergava com o ambiente escuro. – O que eu posso fazer por você?
– Me diz, por que você me deixou lá?
– Do que você tá falando?
– Lá fora! Por que você me trancou pra fora? Por que você não abriu quando eu pedi?
– Como assim? "Lá fora" onde, querida?
– Eu odeio aquele quintal! – esbravejou.
– Que quintal?
Nada respondeu. Tinha seus olhos fixos nos meus. O silêncio crescia e se tornava estranhamente pesado. Nós moramos em um apartamento no sexto andar, não tínhamos um quintal. Nunca moramos em alguma casa com quintal desde que eu e meu marido nos casamos. Não, desde antes. Desde de que começamos a namorar, desde que começamos a morar juntos. Todos esses anos juntos, só nós dois. Lembro bem de quando resolvemos morar juntos e eu me mudei para seu apartamento. Foram bons tempos, mas era um espaço pequeno. Então achamos outro perto do meu trabalho. Mas o preço subiu e ficou caro demais para nós. E foi então que escolhemos o apartamento atual. Maior do que realmente precisávamos, mas como íamos nos casar em breve, parecia uma boa ideia planejar um futuro que levasse em conta nossos sonhos. Então foi pensando em quando adotaríamos uma criança que nos mudamos para lá. E o tempo passou. Tivemos que focar cada um no próprio trabalho visando crescer na carreira, sempre adiando os planos cada vez mais. Um dia chegaria o momento. Demorou para finalmente darmos entrada na papelada para a adoção. Nós não tínhamos recebido a resposta dos documentos ainda. A ansiedade para saber se seríamos aptos para cuidar de uma criança nos consumia. Mas a resposta levou meses, anos, até que enfim desistimos de termos filhos.
Naquele instante, dei-me conta de que a criança deitada em meus braços não era minha filha. Como poderia ser? Nunca chegamos a adotar uma criança. Eu nunca sequer tive uma filha. Meu coração disparou. Nenhum som saiu de minha boca, por mais que eu tentasse pedir ajuda. Não conseguia me mexer. Senti um calafrio repentino que me fez começar a tremer. Aquele rosto me era familiar. Esteve nas primeiras páginas dos jornais há alguns anos. Causa da morte: maus-tratos infantil, o pai alcoólatra havia trancado a própria filha para fora de casa no quintal a noite toda. A garota não sobreviveu ao rigoroso inverno.
– Tô com frio, você não tá, papai? – sua pele estava azulada, seus lábios rachados e queimados.
Junto com as palavras fracas, deu seu último suspiro fraco antes de fechar os olhos. Ela estava morta.
Desesperado, agarrei meu marido pelo ombro tento lhe acordar. Acendi a luz. A garota não estava mais ali.
– Amor! – chamei desesperado.
Foi então que eu percebi. Seu rosto exibia uma expressão de mais puro medo e seu corpo estava inerte, gelado.
Comentários
Postar um comentário