Liz


             - Você não pode se isolar para sempre, Liz.
             - Eu não me isolo. Só me sinto confortável sozinha.
             - Você não sai de casa, não fala com pessoas... eu te conheço, afinal, sou sua irmã.
             - Prefiro os livros, nada além disso.
             - Bobagem! Você tem medo de se apegar e acabar sozinha.
             - Não! - afirmou ao levantar, caminhou do sofá até a cozinha a fim de evitar a irmã.
             - Não me deixe aqui falando com as paredes! - seguiu-a. Liz parou por uns instantes apoiada na bancada de costas para a irmã. Respirou fundo, virou:
             - E se eu estiver com medo? Faz alguma diferença?
             - Liz... por favor, aceite o convite pelo menos. É o casamento da nossa prima, ela deixou bem claro que quer ver nós duas.
             - Faz anos que não nos vemos.
             - Se quiser, vamos embora mais cedo. Eu prometo. - encarou Liz, que por sua vez, encarou-a de volta.
             - Está bem.
             - Então, no sábado, eu passo aqui na sua casa para te buscar. Vê se se arruma.
         Liz tinha uma vida reclusa, mas normal. Apenas evitava contatos sociais desnecessários. Pessoas a faziam sentir insegura. Sempre fora assim, solitária. Estava acostumada à solidão. Quando pequena, brincava apenas com a irmã em quem confiava. Mesmo após atingir a maturidade, manteve relações apenas com familiares. Há pouco morava sozinha e passava a maior parte do seu tempo lendo. Trocava as experiências reais pelas fictícias. Quando não lia, dedicava-se aos estudos e, quando os concluiu, substituiu-os pelo trabalho. Optou por um emprego que pudesse a sustentar sem ter que deixar o conforto de casa. Quando recebeu o convite da prima, rejeito logo de início. Porém, a irmã soube do ocorrido e tomou a tarefa de convencê-la a ir. Liz se arrependeu de ter concordado com a chantagem da irmã, mas já era tarde, teria que ir à maldita festa.
            A semana passou rápido e o sábado chegou despercebido. Liz foi acordada pela irmã que ligou para garantir que mantivesse sua palavra. A cerimônia também não tardou a chegar. As irmãs chegaram cedo e reservaram acentos próximas ao corredor onde passaria a noiva, mais para o fundo da igreja. Durante todo o evento, Liz sentiu-se deslocada. Via as pessoas que a cercavam emocionadas, e ela ali, ansiosa para finalmente voltar para casa. A cerimônia chegou ao fim e a parte que Liz mais temia começara, a festa. Plantou-se discretamente em um dos campos perto dos petiscos. E ficou olhando para a tudo aquilo, como quem observa de longe. Tinha tirado os saltos e desamarrado o cabelo, que antes se encontrava atado no alto da cabeça em um volumoso coque. Se pudesse, teria trocado o vestido apertado e tirado a maquiagem que a irmã a obrigara a usar.
            Passada meia-noite, Liz impaciente foi cobrar a irmã, que estava na pista de dança com um rapaz qualquer.
            - Já não ficamos o suficiente?
            - Desculpa, eu sei que prometi mas... - apontou com o olhar para o rapaz.
            - Se é assim, quero as chaves do carro.
            - Fico te devendo uma. Estão na bolsa - sinalizou em direção à mesa junto à porta.
           Precisou parar para abastecer e aproveitou a oportunidade para comprar alguma comida na loja do outro lado da rua. A cidade era calma e o bairro era um dos mais seguros da cidade. Deixou o carro estacionado no posto e foi descalça. Usava uma das mãos para segurar a saia do vestido. Entrou na loja e foi direto para as prateleiras onde ficavam as bolachas, pegou a do pacote azul. Já estava indo para o caixa quando ouviu:
            - Licença, - disse um homem de estatura mediana - essa marca é boa? - mostrou o pacote em sua mão.
            Liz olhou pro pacote e ficou em silêncio, analisando a pergunta que lhe causou estranheza. O homem achou que tinha sido ignorado quando Liz estendeu o braço e o entregou outro pacote.
            - Este é melhor. - sem demora, virou e saiu andando.
            O cartão não passava, a atendente se desculpou e disse que a falha estava na máquina da loja. Levou cerca de 15 minutos até que conseguisse pagar. Quando olhou para fora da loja, viu que estava chovendo. Estava preparada para correr até o carro, quando o homem, que também havia esperado para pagar, colocou seu moletom no ombro de Liz.
            - Coloque o capuz. - e entrou no seu carro, que estava parado sob o toldo da loja.
           Não deu tempo de agradecer, o homem já havia partido. Voltou para casa, trocou de roupa e dormiu. Deu conta da carteira no bolso do casaco apenas pela manhã. Procurou meios de contato com o dono da carteira. Encontrou um cartão de visita, o nome era o mesmo do escrito nos documentos, portanto, só poderia pertencer ao dono da carteira. Ligou para o número do cartão e marcou de devolver a carteira pelo começo da tarde. Conversaram por algumas horas e tomaram um café ali perto. A partir de então, mantiveram contato.
            Liz não deixou de se isolar quando o conheceu, e ele a respeitava. Apesar de desconfiar do mundo, sentia segurança ao seu lado. Encontravam-se cada vez com mais frequência. Inicialmente em cafés e restaurantes durante as refeições, e mais tarde passaram a marcar de se ver em qualquer lugar que surgisse a oportunidade, como praças. Levou alguns meses antes de entrarem em um relacionamento. Decidiram, então, casar-se. Fizeram um evento simples, apenas para família, e mudaram-se para uma casa cujo aluguel eles dividiam. Liz foi se tornando mais e mais fechada com todos, exceto o marido. Deixou de sair de casa até mesmo para fazer pequenas compras. A restrição de contatos se tornou exacerbada. Seu marido tentou por diversas vezes levá-la para ver um médico, afirmando que estava preocupado com a situação da esposa. Liz recusava veementemente.
            Contudo, desde que Liz tomara consciência daquilo, não conseguia mais tirar o assunto da mente. Sua obsessão a mudou. Ela estava distante. Abandonou a rotina e passou a procrastinar todo o tempo. Não tinha forças para executar qualquer que fosse a tarefa. Gastava dias a fio olhando pela janela. Estava tão imersa, fixada, afogada que não escutava nada do que ocorria à sua volta. Não olhava apenas a vista do lado de fora, por muitas vezes percebia a janela, a janela em si. E a admirava. Os raios de luz que cruzavam o vidro também roubavam sua atenção. O tempo deixou de ser contável. Deixou de comer e deixou de dormir. As noites eram mais longas que o dia, e também muito mais aterrorizante. Chegavam a ser perigosas.
             Depois de estar completamente absorvida em angústia, passou a querer o que estava por vir. Vontade louca que tomou conta de seus sentidos. Juntou energia e começou a vagar pela casa. Caminhava instável pelos cantos, apoiando nas paredes. Caiu de joelhos, prostrada. Desfaleceu. Quando recobrou os sentidos, estava na cama, imóvel. Voltou também à memória a certeza que a perseguia. Adoecia rapidamente, recusava tratamento ou remédios. A preocupação do parceiro passou a ser tal que temia deixá-la para ir ao trabalho. Entretanto, não podia perder o emprego e ia mesmo assim. Liz permanecia em casa no silêncio de seus pensamentos. De tanto pensar, mudou de ideia. Tomou a decisão de evitar os fatos porvir.
              Escondia-se a todo custo. Fugia, fugia. Corria em círculos. A casa jamais fora tão vasta. Os cômodos alinhados distorciam o que parecia um corredor, alongando-o para fora do alcance dos olhos. Não era possível ver seu limite, e quanto mais distante estava, mais próximo o fim estava. O sangue lhe percorria o corpo em batidas constantes e aceleradas. Sentia o calor da substância rubra fluindo. Levava consigo o terror. Cada batida aprofundava o pânico. Fundo e mais fundo. Mas afinal, do que fugia? Um medo irracional tomava conta de seu consciente, não conseguia pensar de forma clara. Aquele que era sua segurança, agora era seu horror. Estava devastada pela solidão. A solidão pesava e simultaneamente anulava o efeito da gravidade. Esmagava seus pulmões, era difícil respirar. Não conseguia mais se mover. Paralisada. Perdida. Sentia-se flutuando sem rumo. O sentimento era horrível. Podia o evitar mas não podia evitar a si própria. Caindo em si, desistiu de qualquer movimento. Deixou-se cair no chão, e ali ficou estirada.
            Seu olhar repousava sobre um objeto caído embaixo da cômoda. Perdido, pequeno, esquecido. Podia ouvi-lo gritar. Grito sem som, grito de dor. Ecoava em seus ouvidos. O medo que sentia era medo de morte. Não somente o medo instintivo de todos os seres que prezam por sua existência, mas um temor repugnante que levava a desejá-la. Qual o significado de tudo aquilo? Ele viria, estava certa disso.
             Pra sua surpresa, ouviu uma voz, ele a chamava. Confusa, levantou-se e começou a procurá-lo. Por que fazia aquilo? Um impulso a controlava. Relutava por dentro. Não vou! - dizia para si. Não posso! - passo atrás de passo, dirigia-se pelo recinto. Baixou a cabeça e fixou os olhos na parte superior do braço. A pele manchada de vermelho, machucada, arranhada. Aquilo sempre esteve ali? Trouxe as mãos perto ao rosto, tremia. O ar parecia rarefeito.
             Finalmente parou. Ficou estática frente à porta maciça de cedro. A porta a oprimia. Desabou a chorar. Não mexia um músculo da face. Sua boca estava seca, lábios rachados, e logo as lágrimas secaram. Exceto por uma. Essa entrou em sua boca. O sal em sua língua a fez relembrar as sensações e deixar a alienação do ambiente. Bateu à porta. Entre - respondeu em voz firme. E com um suspiro, cerrou os olhos e virou a maçaneta. Hesitou por um instante, mas abriu a porta. Adentrou o recinto com a sensação da morte iminente, sentia seu cheiro no ar. Sabia exatamente o que aconteceria. Permitiu-se ver o quarto. A pessoa parada diante de seus olhos seria a responsável pela tragédia. Como podia ter uma expressão tão serena? Ele a observava com cautela. Chamou-a para perto. Como ela em resposta não se mexeu, ele foi quem se aproximou. Evitando machucá-la, puxou-a pelo braço em direção à varanda. Os olhos assustados e a palidez falavam por ela. Relutante, tentou se livrar de sua mão. Ele, por sua vez, agarrou-a ainda mais firme. Iniciou-se um diálogo interno na mente perturbada da mulher. Se ele há de me empurrar varanda abaixo, quê tenho eu a perder? - questionou-se. Almejei por esse momento, não vou me entristecer - parou de lutar.
           Caminhavam calmamente lado a lado. Ao chegarem à beirada, pediu-lhe que observasse o horizonte. Apesar de fisicamente ela estar olhando para a paisagem, ela não via nada. Não conseguia. Não estava cega, estava mergulhada dentro da própria mente, não percebia o mundo ao redor. Sentiu-se abraçada por trás, sentiu-se pequena. Sentiu-se pequena não só em relação a seu assassino, mas também em relação ao mundo, à vida e à morte. Ela sabia que havia chegado a hora. Ele a empurraria em direção ao seu destino. Aguardou e o momento não chegava.
          - Por que a demora? - disse confusa, virou-se de costas para o abismo a fim de enxergar o assassino propriamente.
          - O que quer dizer com isso?
          - Vá em frente, empurre-me! Eu já sei que fará isso.
          - Eu nunca a empurraria aqui de cima! No que estava pensando?
          - Empurre! - ordenou.
          Ele deu um passo para trás. Tentou trazê-la consigo, mas ela não permitiu. Inconformada com o rumo das coisas, deixou que seu corpo caísse para trás. Esvaziou a mente. Silêncio absoluto se fez nos seus pensamentos. Estava acabado. Encontraria o fim lá em baixo. Só deu conta de si quando sentiu que não estava só. Ele havia pulado logo em seguida e a puxou para perto para protegê-la com o corpo. A queda que imaginava ser grande, diminuiu. Perdeu por completo a altura e a fatalidade. O aglomerado em seu peito tornou em lágrimas, mas não desapareceu. Estava ali novamente estirada sobre o chão, mas dessa vez não estava só. Ao seu lado estava ele. Com um movimento mudo dos lábios, esboçou sua indignação. Por que? - perguntava. Não era ele, - indagou para si - meu assassino? Não seria melhor se tivesse morrido? - uma estranha sensação de conforto misturou-se com o terror ao ouvi-lo dizer que estava tudo bem.

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