Vestígios de Mim
Alerta | Gatilho Emocional
É entardecer, o céu tem uma cor peculiar. Exibe um vermelho quase rubro, todo o ambiente é colorido pela luz. O terraço cinza de concreto sério e severo parece estar coberto de sangue. Eu observo com a imobilidade perturbadora de uma estátua. Poderia ser facilmente confundido com um objeto decorativo estranhamente melancólico. O sol vagarosamente desaparece no horizonte sem uma nuvem sequer. Observo o sol, despedindo-me. O vento aqui em cima é forte, um descuido derrubaria qualquer um deste terraço. Inspiro o ar gelado para dentro nos meus pulmões. O barulho dos carros penetra meus ouvidos como um ruído cortante, apesar de distante, tornando minha decisão mais próxima e real. Cada passo em direção à beira é um passo mais distante de tudo aquilo que construí ao longo da vida. Minha respiração fica cada vez mais pesada, coração palpita no peito e a adrenalina corre nas veias. Um misto de medo e certeza.
Um passo.
Em breve me libertarei dessa prisão.
Dois passos.
Não vejo a hora de escapar.
Três passos.
Deixarei esse mundo ignóbil.
Finalmente alcanço o limite e avisto a avenida. Subo na borda. Olho para baixo, tudo parece tão pequeno daqui. Os carros apressados e as pessoas inquietas não param de passar. Em breve estarei ali, cercado por um alvoroço, inerte em meio ao caos. Imagino meu corpo estirado na calçada, frio e desfigurado. Apenas reafirmo minha escolha. Amanhã estarei nos jornais, junto com as mais criativas especulações, se é que é permitido esse tipo de matéria, mas isso não importa. Hoje, ponho fim ao meu sofrimento. Nada nem ninguém poderá me impedir. Muito pensei a respeito e cá estou. Inspiro. Encho meus pulmões com todo ar possível. Encho meus pulmões com sentimentos. Solto o grito mais alto que consigo. Ninguém pode me ouvir daqui. Ninguém pode me alcançar. Grito como se houvesse uma faca enfiada nas minhas costas. Eu não alcanço. Não há nada a fazer. Não posso fazer absolutamente nada. Apenas sinto a lâmina dura e gélida mexendo aqui dentro. O metal arde em contato com a minha carne. Todo movimento dói. Qualquer ausência de movimento dói da mesma forma. Carrego facas da vida a todo momento. Facas e facas infindáveis. A dor nunca cessa. Hoje as arranco de mim. Talvez eu não as arranque, mas certamente irei parar de senti-las, e isso já é suficiente. Grito até não sobrar mais oxigênio. Fico ofegante. Inspiro. Expiro. Inspiro. Expiro.
Nunca estive tão certo a respeito de algo. Eu ousaria dizer que sou irredutível nessa decisão. Preparei-me e agora finalmente colocaria meu plano em prática. Por muito tempo lutei tentando amar a vida, mas falhei. Esperei que ela melhorasse... mas esperei em vão. Em algum momento do processo, a vida perdeu completamente o brilho. Agora sinto como se ela me quisesse mal. Como se ela me perseguisse somente para isso.
Há dois meses comecei a rascunhar um plano. Era simples. Contudo, concluí que não deixaria meus assuntos incompletos. Então, comecei a organizar minha vida antes de deixá-la. Diferente das minhas últimas duas tentativas - tão patéticas que não me preocupo em narrá-las -, optei por um método mais eficaz. Como consegui acesso ao terraço, não perderei tempo explicando. Se assim o fizesse, quebraria o sigilo da futura investigação policial sobre o meu caso, que graça teria? Não pretendo causar transtorno para ninguém. Vendi tudo o que tinha, preparei meu testamento, o contrato do aluguel acaba amanhã, visitei meus pais uma última vez, cancelei todos meu pacote de internet e linha telefônica e por aí vai. Bom, você deve estar se perguntando por que eu estou te contando isso agora. Não quero ser convencido a viver, já o fizeram várias vezes, já me agarrei às mais diversas filosofias. Filosofias que diziam que devo amar a vida, outras que a vida é ruim mesmo e temos que aprender a conviver com ela. Todas deram errado, todas me levaram ao mesmo ponto, que é o que eu me encontro hoje. Mas dessa vez é diferente, dessa vez a decisão é definitiva. Não há nada que me faça mudar de ideia.
Quando entrei em depressão, tudo mudou. Não sabia exatamente o porquê do meu cansaço constante. O cansaço me fez deixar de sair, o cansaço. O cansaço me fez parar de fazer as coisas que eu gostava, não me interessavam mais, o cansaço. O cansaço me impedia de me socializar, o cansaço. E o cansaço foi piorando, piorando, e drenando as minhas forças até a última gota de energia. Fui despido de todo e qualquer traço de felicidade. E quando olhei ao redor, estava sozinho. Foi quanto fiz minha primeira tentativa, no banheiro mesmo. Não contava com o proprietário do imóvel, quem me encontrou quando entrou no apartamento, cuja porta eu esqueci destrancada, para cobrar o aluguel atrasado. Para minha frustração, fui levado ao hospital a tempo e logo comecei o tratamento psiquiátrico e a terapia psicológica. Foi então que comecei a beber. Saía para beber quase todos os dias da semana. Nos dias que não saía, bebia em casa. O álcool interferiu no tratamento e logo tive uma recaída novamente. Faltava uma semana para eu ser chutado para fora do apartamento por não pagar o aluguel de novo. Preferi fazer outra tentativa, pois não queria que meus pais me vissem naquelas condições. Outra vez fui encontrado, mas até hoje não sei quem foi que me encontrou. Outra vez acordei no hospital. Meu segundo tratamento ocorreu bem. Vivi um bom tempo estável. Mas mesmo nessa condição saudável, a vida continuava sem sentido. Pessoas, lugares, momentos, dinheiro, nada preenchia esse vazio. Quando morremos deixamos tudo aqui, por melhor que tenhamos vivido. Lentamente fui recaindo de novo, sem nem perceber.
Sabe, a vida é um jogo que eu não quero mais jogar. Todas as pessoas falsas fingindo cortesia, sorrindo sem sinceridade, vestindo máscaras e atuando. Dizem que o sorriso sincero necessariamente faz com que os músculos na região dos olhos se contraiam. Pode observar, todos forçam sorrisos desonestos. Já fingi ser feliz, fez-me sentir ainda pior. Tentei também deixar de fingir, mas todos ficavam ainda mais em cima querendo ajudar mas só atrapalhavam. Naquela época, admiti ter depressão, e o que ganhei em troca foram comentários ignorantes. "Você já tentou não ter depressão?" E por aí vai. Eu não aguento mais, sinceramente. Não posso dar detalhes dos métodos que tentei antes, mas posso descrever o sentimento que tomava conta de mim naqueles momentos.
Imagine-se numa sala fechada, sem janelas, completamente escura, silenciosa e vazia. Você é capaz de ouvir seu próprio coração batendo. O ar vai ficando mais e mais rarefeito, você sabe que irá sufocar eventualmente. Você está fraco, sem energia, o corpo pesa como se suas veias estivesse preenchidas por chumbo ao invés de sangue. Seu pulmão está revestido por chumbo também, você sente o peito pesar. Você não pode parar de andar, caminha quase que rastejando. É como uma tortura. Você não tem noção do tempo, e ele passa tão lento que seria capaz de confundir minutos com dias.
Costumo dizer que não tenho arrependimentos, mas é mentira. Escolhi apenas os ignorar. A culpa me persegue a todo momento. As pessoas que escutam às minhas lamentações dizem que é exagero meu. Não sei ao certo. Ignorar. Minha vida toda escolhi ignorar, fui um garoto bem passivo. Bom, nem sempre. Mas as poucas vezes que me meti em problema por tomar posição foram suficientes para me fazer perceber que ficar na minha valia mais a pena. Ignorava também meus próprios pensamentos, mas mesmo assim eles insistiam em me atormentar. Sim, eu me esquivava dos problemas. Sim, eu os evitava. Sim, eu fugia. Meu terapeuta dizia que eu não devia fugir, que eu devia confrontar. Enfrentar os problemas... cheguei a tentar, mas é um gasto de energia tão desnecessário. Eu não me reconheço mais. A depressão entrou em mim e tomou o meu lugar. É um estranho no meu corpo. Cresci cheio de objetivos e planos. Todos se realizaram. O que me frustra é o fato da conquista não ter significado algum, ser tão vazia e fútil. Não mudou nada nos meus sentimentos. Uma corrida inútil. Corremos, corremos e corremos, mas para que? Nem o processo nem o alvo foram capazes de me trazer um pingo de alegria, e muito menos deixar qualquer marca.
Eu me perdi. Perdi-me na jornada dada vida. Não sei quem sou. Permanecem, apenas, vestígios de mim. Eu já morri. Quando eu deixar esse corpo não fará diferença. Restarão apenas vestígios, que desgastados pelo tempo, acabarão esquecidos na vastidão do mundo. Meu nome não será lembrado. Passarei por essa vida como a maioria dos homens. Esquecido. Não tive caráter notável. Não fui compassivo. Não contribui para o mundo. Não serei conhecido nem pelo bem nem pelo mal que causei ao mundo. Pessoas nascem e morrem a todo momento. A vida é cruel, injusta e vã. Alguns vão sofrer - eu diria a maioria -, mas todos serão esquecidos. Com exceção de poucos. E tenho certeza que não estou entre eles. Já desejei fama, já desejei dinheiro, já desejei admiração. Porém, quando estamos no caixão, cercado de outras pessoas na mesma condição eterna, somos todos iguais. A morte vem das formas mais criativas, mas no final, é mais igualitária que a vida.
Às vezes tenho a impressão, não sei se errônea, de que os outros não veem a vida como eu. As pessoas apesar de muitas vezes infelizes, elas costumam amar a vida, amar estarem vivas. Até quando estão frustradas, sempre preferem a vida. Ou seria medo da morte? Talvez seja instintivo. Não sei. Queria ter essa visão, mas não sou capaz. Elas sempre riem, e riem com leveza. É incômodo rir. Rimos muito, apesar de estarmos nos corroendo por dentro. É bom por uns instantes e alivia a dor, mas depois ela volta e pior. Como se estivéssemos tomando o remédio para a doença errada. Há uma melhora para depois decairmos novamente. As pessoas são estúpidas sabe, patéticas. Com certeza você deve estar se sentindo ofendido agora, dizendo que eu sou arrogante. Estou me incluindo nessa generalização. É fácil comprovar a idiotice humana. Faremos assim: uma lista. Curta e grossa. Guerras; torturas; assassinatos; desigualdade; exploração; extorsão; mentira; humilhação; etc.
Não vou me delongar em argumentos. Seres humanos são egoístas, não há nada a ser feito e muito menos discutido.
Antes de prosseguir, tiro uma pequena sacola do bolso. Abro com calma. No fundo se encontram restos que queimei mais cedo. Queimei para dar fim a tudo aquilo. Queimei como parte do plano. Joguei a maior parte fora, mas guardei essa pequena porção. Fotos, bilhetes, cartas. Qualquer lembrança que eu puder levar comigo, melhor. Viro a sacola de ponta cabeça e vejo os pedaços sendo levados pelo vento. Afastam-se, vão-se para longe e jamais voltarão. É uma viagem só de ida tal qual a minha será. Pedi para ser cremado, assim como cremei boa parte das recordações que sobrariam de mim. Meu testamento tinha apenas isso, afinal, abri mão de tudo que era meu. Não tenho nada e não sou nada.
Antes de prosseguir, tiro uma pequena sacola do bolso. Abro com calma. No fundo se encontram restos que queimei mais cedo. Queimei para dar fim a tudo aquilo. Queimei como parte do plano. Joguei a maior parte fora, mas guardei essa pequena porção. Fotos, bilhetes, cartas. Qualquer lembrança que eu puder levar comigo, melhor. Viro a sacola de ponta cabeça e vejo os pedaços sendo levados pelo vento. Afastam-se, vão-se para longe e jamais voltarão. É uma viagem só de ida tal qual a minha será. Pedi para ser cremado, assim como cremei boa parte das recordações que sobrariam de mim. Meu testamento tinha apenas isso, afinal, abri mão de tudo que era meu. Não tenho nada e não sou nada.
Sinto o frio, e dói. Estou mal agasalhado. Propositalmente, pode-se dizer. Quero sentir meus sentidos aguçados nos meus últimos momentos. O sol logo estará escondido no horizonte, olho para sua luz uma última vez. Admiro as nuvens arrastadas pelo vento no céu que bate no meu rosto trazendo uma sensação desconfortável de formigamento no rosto. Abro os braços e fecho os olhos. Concentro nas batidas do meu coração. Elas cessarão em instantes. Sinto-me satisfeito ao pensar que finalmente findará meu sofrimento. Finalmente me libertarei dessa névoa escura e sombria. Sou eu contra o mundo. Travo uma batalha contra a vida. Minha luta é contra mim. Depois de muito combater os outros, percebi que eu sou o problema. E disseram para eu enfrentar meus problemas. Agora é o momento. Meus dentes rangem de frio. Meus pelos arrepiam. Mas é bom. Quero morrer com essa sensação em mente. Quero me lembrar do que senti agora até o último instante. Serei eu frio como ar em breve. Abro um sorriso de satisfação.
Dou mais um passo. Metade dos meus pés não encostam mais o concreto, posso sentir. Algo subitamente cai em minha cabeça. Elevo a mão e passo a mão no cabelo a fim de averiguar minha hipótese.
Droga, maldita ave!
Olho para minhas mãos com nojo.
Argh!
Tomado por desgosto e com o chuveiro em mente, dou meia volta e parto para casa a fim de me livrar daqueles dejetos indesejados.
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